É bem comum ver pessoas postando frases e idolatrando um cara
que talvez não merecesse toda essa santificação e que não sou escrota o
suficiente para dizer que nunca compartilhei desse fascínio ou que nunca dei
share em uma das frases impactantes dele. Afinal de contas, ele era um gênio ousado que não se importou com a opinião dos outros. Não é isso o que todo mundo quer
ser?
Bem...diferente da maioria que se contenta em ler somente
alguns poemas e quotes, a minha atitude foi admirar, procurar saber mais sobre e
pegar livros para ler. Óbvio que ler 3 livros do cara não me faz uma
especialista, mas me dá muito mais conhecimento que grande parte da galera que
jura devoção a um homem que só conhece de nome. Por isso costumo dizer que
existem 3 tipo de idiotas apaixonados pelo Charles.
- Que conhece só a fama de velho tarado e compartilha as frases porque acha que parece cult, profundo ou descolado.
- O que leu e se identificou por razões que podem ser complexas demais para esse texto.
- Os que leram somente poesias soltas ou obras menos significativas e não entraram em contato com informações extras que fazem as histórias se encaixarem.
Mas têm
aqueles (não idiotas) que amam o escritor puramente pela obra e seu valor literário disruptivo
que faz o leitor se confrontar com escatologias, violências e o perfeito perfil
do anti-herói que contrapõe todo o sonho americano. O amam por sua escrita “atropelada”
e direta que segue a levada do movimento Beatnik que revolucionou lindamente a
forma de fazer literatura durante os anos 50/60.
Mas Jés, por
que você odeia tanto esse cara?
Primeiramente
é bom dizer que eu não o odeio, acho um ótimo escritor (li 3 livros, estou com
o 4 na mão e pretendo ler ao menos 5 obras). Diferente do que a maioria das pessoas pensa, enxergo a história dele
como uma vida repleta de tristeza, falta de amor, desilusão e solidão. O meu
problema não é com ele e sim com as pessoas que se agarram a ele como uma espécie
de amuleto inspirador.
Para ficar
mais didática, vou citar 2 motivos pelo qual ele era um cara que não faz
sentido ser adorado como um grande guru do lifestyle de ninguém e 1 motivo para ser
querido como um escritor incrível que realmente foi.
1- Que
ele era mulherengo machista, todo mundo sabe. Mas tem mais.
A relação
deles com as mulheres não tinha nada de saudável, ser mulherengo não é um
problema desde que as mulheres envolvidas saibam que são somente transas. O meu
caso aqui não é de pudor e vou contar algumas passagens que me deixaram bem
desconfortável.
No primeiro livro
ele relata o tempo em que trabalhava como carteiro. O nome do livro é Cartas na
Rua e no geral é bem legal e não foge do estilo que perdurou até a sua penúltima
obra. Durante o livro ele sempre fala
sobre uma casa que ficava na rota de entregas dele, nessa casa morava uma deficiente já madura que vivia presa e costumava gritar quando ele passava.
Gritava coisas sem noção, ela tinha problemas mentais e mexia com ele porque
era a única pessoa passando na rua, imagino quanto tempo ela ficava sem falar
com ninguém, só trancada ali e ansiosa para ver outras pessoas.
Pois bem, na
cabeça já madura do Charles ela estava “enchendo o saco” e merecia uma lição.
Um dia ele foi lá, estuprou-a e relatou o silêncio dela como uma espécie de
consentimento quando a maioria de nós tem plena ciência que a reação corporal
mais comum diante de um estupro é “abandonar o corpo”. Depois disso ele se gaba
que nunca mais ela gritou quando ele passava.
Já sendo um
escritor famoso no livro intitulado Mulheres ele faz um compilado de histórias de
mulheres com as quais se relacionou e entre mil passagens no mínimo nojentas, mas
que podem ser consideradas ao menos normais, levando em consideração o estilo de
vida que ele costumava levar. Ele conta sobre uma garota que levou para casa e
que desmaiou no sofá dele. Na cabeça de Charles se ela foi até lá fumar da
maconha dele e beber do álcool dele, ela estava devendo o sexo que ele esperava
e mesmo com ela apagada ele transou com ela. (leia-se: estuprou) Gostaria de
dizer que essa foi a única vez que ele se aproveitou de uma mulher desacordada
e relatou como um ato normal ou exercício
de direito. Mas não foi.
Aqui só
relatei (alguns) casos de estupro, mas a forma que ele via as mulheres era extremamente
degradante em alguns pontos do livro.
Se erguer a bandeira
do feminismo para você significa que continuar consumindo materiais de gente que incentiva
a misoginia e corrobora com práticas machistas, compartilhar frases dele é no mínimo
contraditório.
2- Ele
não se achava "foda", porque ele não era mesmo. (Mas o que é ser foda?)
O Charles
achava que todo mundo era idiota. Era uma pessoa entediada que não gostava de
praticamente ninguém e quando sentia que poderia estar gostando um pouco que
seja, sentia tanto medo que fugia como se não houvesse amanhã. Gostava de dizer que estava indo aos lugares
somente pelo sexo, mas em vários momentos deixava claro o incomodo que sentia
em estar sozinho com ele mesmo. Vivia bêbado por não ser capaz de suportar a
vida se estivesse sóbrio e via o seu comportamento autodestrutivo com a
indiferença de quem não se importava em morrer no dia seguinte. Não haveria
nada para perder e ninguém para deixar para trás. Tanto fazia.
Ele era
viciado em corrida de cavalos, fora o sexo, as apostas era a única coisa que
conseguia fazer com que se sentisse um pouco mais vivo e era com isso e drogas que
torrava todo o dinheiro que recebia das editoras.
Resumindo. Uma pessoa cronicamente deslocada que não conseguia se
conectar com ninguém, que não tinha força e nem vontade de encarar a vida com
sobriedade ou responsabilidade e que sofreu até os últimos dias pela morte da
única mulher que considera já ter amado verdadeiramente na vida.
Eu não sei
você, mas para mim isso parece uma vida bem triste. A não ser que nos outros
livros tenha havido alguma virada brusca de comportamento...isso, e um escritor formidável é tudo que eu tenho.
11 -
Ele
fez do Henry Chinaski o que o Charles nunca conseguiu ser.
Através da
sua escrita direta e extremamente sincera ele conseguiu trazer para dentro do
seu universo sombrio e conturbado milhares de pessoas. A falta de conexão que
relatei no tópico anterior foi driblada pela escrita e pela coragem de dizer
sem o mínimo de pudor aquilo que ele era sem se importar se haveria criticas ou
aplausos. Na verdade foi esse estilo “to nem aí” que redeu para ele a fama que
até após a sua morte é louvada.
Se todos os
casos contados nos livros aconteceram de verdade ou se foram somente licença
poética é impossível saber (mas pelo que ele dizia, parecia verdade) e sendo
assim, é praticamente impossível julgá-lo como um ser humano detestável. Por
mais que sejamos capazes de imaginar coisas bizarras, só podemos ser condenados
por atos realizados de fato (a pornografia deixa essa transcendência bem clara).
Esse texto
pode estar um tanto confuso quanto os meus sentimentos em relação ao autor, porque é exatamente assim que me sinto. Fico oscilando entre a repulsa e a
admiração, mas o que realmente quero deixar bem claro, é a minha desconfiança
sob essa massa de pessoas com prazeres escatológicos que se lambuzam na degradação
dos outros. O público vibra com sofredores, com pessoas que se desfazem aos
pedaços diante dos olhos dele enquanto suplicam por ajuda e recebem flashes das fotografias de todo o sangue e lágrimas que jorram copiosamente de seus corpos, veem seus fragmentos sendo louvados como suvenires e palmas que apoiam a sua caminhada para um fim trágico somente para depois esse mesmo público fingir surpresa quando o fim chega.
Nós surramos
e crucificamos pessoas para que possamos fazer delas nossos santos.
Um exemplo? Dou
dois! Temos a Amy Whinehouse e a Miley quando estava claramente na merda e “todo
mundo” ficou triste quando ela voltou para o eixo.
Eu queria
muito que as pessoas parassem de romantizar a auto-degradação e a desestabilidade
psicológica dos outros, mas se esse hábito acabasse o que sobraria? Ainda haveria algo que pudesse ser chamado de arte?
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