Parte 1
Havia um mês desde o sim e o Jota
não existia mais. O Carlos já havia se mudado e sempre que possível ia almoçar
com ela ou buscá-la no trabalho para que passassem mais tempo juntos. Em pouco
tempo ele estava presente em tudo que dizia respeito a Ana e sem que percebesse,
a acompanhava durante todo o dia, online ou presencialmente.
Em um desses dias eles saíram para
jantar a pedido dele, foram para um restaurante diferente e mais distante. Durante
o jantar ele sempre dava um jeito fitá-la como no primeiro dia, eles
conversavam sobre a vida, sobre o trabalho e quando chegou o momento de falar sobre
o futuro Carlos começou a demonstrar ideias que a deixaram no mínimo intrigada.
Ele falava sobre casar, ter filhos, sobre como cuidaria dela e como ela não
precisaria mais trabalhar.
Ele era cristão e ela apesar de
ser afastada da igreja e ter um comportamento controverso, mantinha as raízes da
fé vivas dentro dela. Na verdade, foi esse um ponto que aproximou muito a Ana
do Carlos. Ela nunca tinha tido a chance de se envolver com alguém que
compartilhasse suas crenças e sempre foi muito solitário ter que guardar para
si coisas que a faziam ser quem é e ter as escolhas que tem. As pessoas do seu convívio
sempre a acusava de ser sonsa ou mentirosa por causa das renúncias que fez pela
fé e para driblar a rejeição, forçava comportamentos mais mundanos, se
condicionando a falar de coisas que nunca fez ou que nem sabe se realmente
acredita. Dentre as mil horas que passavam juntos ele nunca havia demonstrado
ser um fanático ou radical, somente oferecia o conforto de estar com alguém que
a entendia sem questionamentos ou deboche.
Com o tempo, toda essa presença foi
deixando Ana desconfortável. Ela gostava da solidão e como uma típica introvertida
sempre precisou dela para recarregar as baterias emocionais. Agora ela saía
quase todos os dias depois do trabalho e aos finais de semana passava
praticamente o dia inteiro ao lado dele. A imposição da presença em todos os
momentos estava começando a se tornar um fardo, ela precisava conversar sobre
isso e acreditou que o final de semana na casa de praia da família dele poderia
ser o ambiente perfeito.
A casa era linda e tão grande que
a igreja costumava usar para os retiros anuais. Passariam dois dias lá e isso é
muito mais do que Ana já passou sozinha com um rapaz. Mochila nas costas e
encantamento nos olhos, ela não sabia que a família do Carlos era “bem de vida”,
ele não falava muito sobre isso e ela sempre achou que fossem de classe média,
assim como os dela. Ele a apresentou a cada cômodo da casa, rodaram os 5
quartos, os 3 banheiros, as 2 salas, a piscina, a varanda, o quintal, a entrada particular para a praia e terminaram
na cozinha. Ana sentou-se no banco alto
da bancada e lá tinha uma visão panorâmica de tudo, amava homens que cozinhavam
e ele sempre fazia pratos surpreendentemente gostosos. Costumava dizer que
morar sozinho o fez muito bem e que ela só não sabia cozinhar porque permanecia
eternamente na aba da mãe. Talvez usasse palavras mais sutis, mas era dessa
forma que ela entendia e por isso nunca cozinhou nada para ele.
Parte 2
A refeição seria moqueca de peixe
e enquanto ele temperava e fazia as coisas mais complicadas, ela ficou
encarregada de cortar os legumes seguindo as instruções dele. Enquanto cortava
algumas folhas, ele se aproximou por trás, abraçou-a intensamente, beijou-a demoradamente
no pescoço e após uma leve fungada disse:
- Muito bom te ter aqui. – sussurrando
ao pé do ouvido, como quem conta um segredo.
Mesmo sendo inesperada, não tinha
classificado a atitude como ruim, ela tinha ficado não excitada que a faca
escorregou das suas mãos e com mais alguns segundos de afagos, estaria
completamente rendida. Permeada de dúvidas, preferiu não falar nada até que ele
a puxou subitamente pela mão dizendo:
- Vem! Eu quero te mostrar uma
coisa! –
- Mas eu ainda não terminei aqui...
– Ela respondeu enquanto era guiada para longe da bancada.
- Tá tudo quase pronto, daqui a pouco a gente termina! – Respondeu carinhosamente,
enquanto a puxava atravessando a sala e se dirigindo para o quintal.
Chegando lá, sentou na rede e fez
um gesto a convidando para juntar-se a ele. Ela sentou ao seu lado e ficou
esperando que dissesse o que gostaria de mostrar, sem demora ele apontou para
uma série de gaiolas que tomavam quase toda a parede, nelas tinham os mais
diferentes tipos de passarinhos, mas nenhum parecia raro ou contrabandeado. Ele
deitou na rede e conduziu o corpo dela a fazer o mesmo, ficaram de frente para
as gaiolas como em um observatório mais confortável. Ele aninhou-se por trás,
envolveu os braços na cintura e encostou os lábios na nuca de Ana, que se
arrepiou inteira quando ele começou a contar a história de cada um dos
passarinhos roçando os lábios na sua nuca. Quando estava perto de revelar a
origem do último, as mãos de Carlos tomavam rumos proibidos pelo corpo dela e
ao mesmo tempo em que a respiração ficava mais pesada e os gemidos escapavam
vez ou outra, ela sentia que não era o momento e para se afastar do perigo disse:
- Eu acho melhor a gente ir
preparar o peixe, eu já estou com fome. – Se levantou e caminhou em direção a
cozinha.
-Vai terminando de cortar que eu
ainda vou ficar mais um pouco aqui. – Ele respondeu.
- Tudo bem, não demora que eu tô com
fome – Ana disse enquanto desaparecia pela porta.
Parte 3
Algum tempo se passou, todos os
legumes estavam cortados e ele nunca voltou da varanda. Pensou que talvez ele
estivesse dormindo e no intuito de não incomodar, resolveu ir assistir um pouco
de televisão na sala principal. Quando chegou lá, a sua mochila estava aberta e
Carlos estava com o seu celular nas mãos. Não precisou se aproximar muito para
ouvir a voz do Jota ao telefone. Ela mal podia acreditar no que estava acontecendo.
Ele estava ouvindo os áudios salvos de conversas antigas com o Jota e ela
paralisada de medo e raiva, somente observando enquanto ele violava a sua privacidade
e revirava momentos de intimidade que vieram antes dele.
Ao sentir a presença dela, ele se
virou e não se intimidou por ter sido pego. O olhar dele não tinha a mesma luz
que antes e a voz saía com uma aspereza que ela jamais tinha ouvido antes.
- Quer dizer então que ele te
deixava louca? Como você disse mesmo? Com tesão? – Enquanto ele falava e se
aproximava com agressividade, ela continuava imóvel.
- Durante todo esse tempo a gente
não tinha nada para você ficar se masturbando como uma cachorra no cio por um
bizarro qualquer na internet!? Eu queria me casar com você! – Ele gesticulava
freneticamente, mas não gritava e isso era o mais assustador, a voz dele
atingia Ana como em um pesadelo do qual ela já tinha lido muitas vezes sobre o
final.
- Você não tem nada para me
dizer? Com essa voz de vagabunda! Como é mesmo? – Ele começou a imitá-la
reproduzindo frases ditas para o Jota com violência e deboche.
Sem dizer uma só palavra, Ana
afastou-se dele e com as lágrimas inundando o seu rosto, pegou a mochila sob a
mesa e o celular sob o sofá. Nesse meio tempo ele falava ofensas aleatórias e
dizia baixarias que aparentemente tinha imaginado fazer com ela. Quando ela se
aproximou da porta de saída, ele mudou o tom procurando se acalmar e disse:
- Você não tem nada para me
dizer?
Ana ainda de costas, limpou as lágrimas
do rosto, virou na direção dele, olhou-o fixamente nos olhos e disse:
- Acabou.
Parte 4
A casa era praticamente no meio
da estrada, de um lado mar e do outro mato. Não tinha sinal no celular e o próximo
ponto ficava a aproximadamente 2Km. Nada disso foi o suficiente para fazê-la
querer voltar para lá. Ana foi andando pela beira da estrada e a medida em que anoitecia
o ponto parecia estar cada vez mais distante. Quando já conseguia avistá-lo ao
longe, o carro do Carlos se aproximou e começou a acompanhar os seus passos devagar.
Ela estava com medo, sentia que ele poderia matá-la ou fazer coisas piores ali mesmo.
Não teria como pedir ajudar ou gritar por socorro, não conseguiria se defender,
tudo que tinha comido era algumas barras de cereais que tinha na mochila e bebido
um pouco de água. Estava fraca, dolorida e muito cansada. Depois de alguns
minutos somente a acompanhando, ele baixou o vidro do carro e ficou olhando
para ela, estava tentando recriar o mesmo brilho de antes, mas o seu feitiço
não surtiu efeito algum, ela nem se quer tinha olhado para ele e caminhava como
um soldado em direção a guerra, desejando loucamente chegar o mais rápido
possível aquele ponto. Ele quebrou o silêncio dizendo.
- Ana, entra no carro! – E sem
obter resposta, repetiu.
- Ana, entra no carro! Eu perdôo você.
Ela não podia acreditar que
estava ouvindo aquilo, a voz dele fazia o corpo dela tremer e sem nem olhar
para o lado, os passos foram ficando cada vez mais rápidos. Mais uma vez sem
resposta ele apertou com força a buzina e assustada ela parou a poucos metros
do ponto. Novamente ela tinha congelado e agora o encarava tentando não mostrar
o pânico que estava sentindo. O ponto de ônibus vazio e mais uma vez ele disse:
- Entra no carro! Eu te trouxe. Eu
vou te levar de volta.
Ela ficou parada, calada e
olhando para ele.
- Não adianta você fazer esse
número de santa magoada, eu já sei quem você é de verdade! Entra logo no carro
antes que eu vá te buscar!
Ana continuou imóvel e dentro
dela só havia oração e um coração disparado. Foi nesse momento que o ônibus
chegou como uma verdadeira boia de salvamento,
ela não pensou nem dois segundo
antes de correr e pular como um gato para dentro. Ela não sabia da onde veio
forças ou energia para simplesmente correr e entrar no ônibus antes que ele
conseguisse descer do carro. Era um milagre.
Sentada e segura ela só sabia
chorar. Chorou a viagem inteira, chorou no ponto seguinte e ao entrar no segundo
ônibus já não tinha mais lágrimas ou bateria no celular e então dormiu.
Parece que há pessoas nesse mundo
que são forjadas para a solidão.